quarta-feira, fevereiro 16, 2005

Não há milagres antes das 10h da manhã...

(Inferno - c.1520, óleo sobre madeira 119 x 217,5 cm
Museu Nacional de Arte Antiga - Lisboa Portugal)

Alguém me consegue explicar porque o céu, Deus, ou lá o que É, têm a fábrica de milagres em periodo de funcionalismo publico? Não é justo, porque noutros horários, em periodos de excelência ou em emergências é necessário haver pelo menos um piquete. Imaginemos um hospital ser urgências? Ou os médicos marcarem consultas para as 9h e só chegarem às 12h?
Como podem as diversas religiões explicar aos seus fiéis: "desculpe senhor (com letra minúscula) mas o seu pedido não poderá ser atendido porque estamos fora de expediente"... é claro que não fazem isso, mas é essa a resposta óbvia em qualquer serviço religioso. Porque afinal, para que serve a religião se não houver milagres? Conforto espiritual? Quem acredita nisso?! De certeza que muitos não acreditam e ficam injuriadíssimos por eu estar a sugerir isso; porém quantos não são fervorosos porque, no meio da sua fé, está um pedidozinho desesperado "Vá lá Senhor (agora com letra maiúscula), liberte-me lá os numeros do Euromilhões".
E porque me insurjo com isto? Não me insurjo simplesmente. Fico embasbacado por ver tanta gente a vir ao funeral de uma pessoa que simplesmente é uma desconhecida; ver pessoas a chorar por pessoa tão bondosa; pergunto-me: será que alguma daquelas pessoas que veio DE PROPÓSITO a Coimbra ao funeral da Irmã Lúcia (porquê em maiúsculas?!) é um trabalhador comum, que tem o seu horário, paga os seus impostos, enfim, é um cidadão conforme? É que se forem todos reformados, ricos, bem na vida, desempregados, estudantes, donas de casa, ou simplesmente benfiquistas (que são os unicos que vejo concentrar-se aos magotes, em qualquer hora do dia, às portas do Estádio da Luz, quando querem protestar com a equipa), ou pior, faltarem ao emprego, puserem baixa, ou outros, só para vir ao funeral... quem fica a trabalhar?! Acrescentando a isto as pontes, as tolerâncias de ponto, férias fortuitas aproveitando os feriados que aí vêm, e Portugal fica com metade da população activa sem trabalhar durante metade do ano! E se morre o Papa? Mais uns dias de luto, de funerais, horas de cobertura televisiva...
Há outro pormenor: as pessoas dizerem que Irmã Lúcia tem mesmo cara de santa... com a mesma desfaçatez que dizem que o Carlos Cruz tem cara de pedófilo. Como é que se adivinha isso? Como é que se vê? No outro dia ouvi uma frase fenomenal sobre o Paulo Pedroso: "este tem mesmo cara daquilo que é" referindo-se obviamente à pederastia.
A forma como se elevam as pessoas a algo que são ou não são por falta de provas é gritante. É uma forma de justificar, talvez, porque o país tem niveis de desenvolvimento tão baixo, porque temos o sindroma de urinol: em vez de nos preocuparmos com o que temos entre mãos e colocarmos a trabalhar bem, preocupamo-nos a olhar para o vizinho do lado para saber se é maior ou menor, e agir de acordo com essa informação.
É genético e não me desembaraço desse pormenor. Também padeço do sindroma do urinol. Claro que não olho realmente e fisicamente para o lado, e se olhasse o leitor não teria nada a ver com isso; porém lembrei-me desta crónica por ter o exame de Cálculo III (matemática aplicada) às 9h da manhã. Mesmo se fosse um devoto (que não sou), santinho em reclusão (que nunca serei), que me chamasse Maria do Sagrado Coração, e tivesse os favores do Céu (aka o local onde vive Deus e a possivel fábrica de milagres), e pedisse um milagre, às 10h já vou com uma hora de exame, e termina uma hora depois... conclusão: nem Deus consegue numa hora o que o comum dos mortais mal consegue em duas! - e se conseguir não é Deus, mas professor de Matemática...
Tem alguma base de lógica; por isso na ultima vez que estive presente nesse exame me ocorreu uma frase à cabeça, não sei se a inventei ou se já a ouvi alhures: "Feel free to feel stupid!"

Paulo Aroso Campos - paulo.aroso@zmail.pt

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