11 de Março 2004
Paris, 8h da manhã
O rádio despertador toca em modo rádio, sintonizado na rádio Alfa. Acordo e olho para o relógio para ver as horas: 8:30. Como muitos eu adianto 30 minutos o relógio despertador para, quando tocar, achar que estou atrasado e assim não passo mais tempo na cama... pura mentira!, porque fui eu que o fiz propositadamente e sei o que fiz.
Ainda meio a dormir começo a ouvir com clareza o que transmitem: o noticiário das 8h. É dificil perceber porque falam na hipótese de um atentado, falam de uma estação de comboios, falam de Madrid.
Levanto-me e vou tomar um duche, preciso de ir para a escola. Enquanto me visto a seguir ao duche, ouço o noticiário das 8:30 e percebo o que aconteceu: em Madrid, nas primeiras horas da manhã, houve um atentado numa estação de comboios. Ainda não se sabe muito bem, mas parece que várias composições explodiram e tudo indica que foi um atentado bombista. Fico um pouco estupido com aquilo: atentado bombista numa estação? Pessoas que se deslocam para os seus trabalhos, tal como eu o vou fazer daqui a uns momentos...
Saio da residência e atravesso a Cité Universitaire ainda a pensar naquilo. O dia está meio nublado mas o sol desponta por entre núvens negras; o chão ainda está meio molhado do aguaceiro nocturno, coisa que tem acontecido todos os dias. Passo a entrada da Cité Universitaire, atravesso a estrada em direcção à estação de RER (Réseau Express Régionale, uma espécie de comboio suburbano), e corro para apanhar o RER-B até à próxima estação: Denfert Rochereau. Apesar de não ter medo de sair à rua, apesar de ter ouvido que já aconteceu algo parecido em Paris, vejo que a população está serena; possivelmente muitos ainda nem sabem o que aconteceu, mas a pressa é a mesma dos outros dias, e não há sinal de tristeza, de medo ou inconformismo. Chego a Denfert e dirijo-me à linha 6 do metro: mais 3 estações e estou no destino - Place d'Italie!
Apesar de estar aqui à cerca de duas semanas ainda preciso de recorrer ao mapa de linhas do metro: a rede é muito extensa e eu tenho que estar na escola às 9:00, por isso não me quero enganar. Logo de manhã, nas estações de metro como no RER passam milhares de pessoas, sempre apressadas a correr nas escadas rolantes, corredores, etc. Lembro-me que, quando decidi fazer um periodo de estudos no estrangeiro, no Programa Erasmus, a minha primeira decisão era ir para a Suécia, porém aí já não havia vagas e virei-me para Madrid... a ultima escolha era Paris... Madrid, interessante!
Ao chegar à escola, ainda sem trabalho especifico por fazer (ainda não tinha seminário atribuido), fui aos computadores ver as ultimas noticias, tanto dos jornais portugueses como dos franceses. O primeiro ministro espanhol, José Maria Aznar, atribuia, sem qualquer dúvida, aquele horrifico acontecimento à ETA. Sorrio na minha ignorância... como tenho algum interesse pelo País Basco (mais pela língua) já li alguns livros sobre a luta dos bascos à autodeterminação e sei que este não é o método da ETA: eles fazem assassinios seleccionados a politicos, gente importante ou influente, e raramente matam civis indiscrimindamente e às centenas. Porém nunca se sabe... mas fez-me lembrar aquele dia 11 de Setembro, em que estava a ver televisão às 14h e vejo o segundo avião a embater nas torres do WTC... semelhanças? Muitas... só que aí não eram Bascos mas Fundamentalistas Árabes.
Li que o governo Francês levantou o plano Vigiprate com receio de retaliações de que já foram alvo no passado. Este plano, uma espécie de plano de emergência, funciona com cores, e começa neste momento no mais grave: vermelho. Assim, sempre que seja pedido em qualquer local do estado, na rua, transportes, a nossa identificação, temos de apresentar. Podemos, também, ser revistados se nos acharem suspeitos.
Quando fui almoçar à residência já notei diferenças nas estações de metro e RER: vários avisos nos altifalantes para que as pessoas tenham atenção às malas e que avisem caso detectem alguma abandonada; vê-se "policia" com a farda da RATP (empresa de transportes de Paris), parecidos com a nossa policia de intervenção, com pistola e cacete, a patrulhar as estações, a entrar nos transportes e fazer viagem até à estação seguinte.
Durante o resto do dia notei que na rua havia mais policias, nunca sozinhos, e cheguei a assistir a algumas pessoas a serem revistadas: mais grupos de jovens com aquele estilo chamado "dred", ou com aspecto de muçulmanos, ou pretos. Não vi um branco a ser revistado, tirando esses miudos em "gang" vestidos à "dred". Por um lado fiquei aliviado porque não seria considerado suspeito, mesmo transportando uma mochila preta com o simbolo da AAC (que para eles é esquisito).
À ida para casa comecei a pensar no que eles consideram como suspeito. Pode ser qualquer um, mesmo eu. Posso ter a barba por fazer e ser mais maltrapilho, ou posso estar imaculado; será que são só os muçulmanos que são suspeitos? E como se distingue um etarra? Tenho dois colegas Erasmus de Bilbau - o Iñigo e o Fernando - será que são suspeitos?
Chego à residência e o meu colega do quarto em frente pergunta-me se sei as noticias. Ele estava com um ar chocado. Fouhad, marroquino e muçulmano de religião. Rapaz simpático, baixo, de óculos e ar inteligente. Disse que sim e também estava chocado; perguntei-lhe se já se sabia quem tinha feito aquilo e ele disse que tinha sido um grupo muçulmano... fiquei um pouco inibido pela forma como ele disse aquilo porque notou-se o choque dele pelo acto cometido e não um orgulho, ou uma defesa dos interesses islamicos. Convidei-o a beber um Porto, que tinha, sábiamente, levado na mala, e ele recusou cordialmente: não bebia, era contra a religião dele.
Voltei a pensar na questão dos suspeitos: como é que se pode olhar os muçulmanos todos pela mesma bitola? Como se pode pensar que uma cidade como Paris, com (arrisco dizer) um milhar de habitantes muçulmanos possa ser alvo de ataques terroristas daquele género, cometidos por pessoas tão simples como o Fouhad?
O que mais me choca nesta história toda é haver grupos de pressão islâmicos que fazem actos bárbaros deste tipo como que a castigar o ocidente e toda a sua tecnologia, da qual eles utilizam para matar em vez de fazer o bem. Dessa forma só conseguem fazer com que muitos indiferentes e anónimos virem o seu ódio contra uma comunidade pacífica, simpática, aberta e acolhedora, como são os muçulmanos. Estes, sem qualquer culpa, são mal vistos por todos, são vistos como pólos terroristas... piores que pessoas com doenças contagiosas.
É este o mundo em que vivemos! Até vir embora para Portugal, por algumas vezes fui evacuado do metro, estive em estações próximas a outras onde havia malas abandonadas. Nunca tive medo, é inevitável. Com medo não se sai de casa, e mesmo aí podem acontecer acidentes; só os que não morreram em Atocha ou em New York é que se aperceberam, e ficarão para sempre marcados, pelos atentados. Esses sim ficarão sempre com medo; quem morreu nem sequer soube que foi vitima de uns imbecis que usam a religião para os seus propósitos pessoais. A população em geral continua a sua vida: não é por morrer uma formiga que a colónia deixa de trabalhar...
Paulo Aroso Campos - paulo.aroso@zmail.pt
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