terça-feira, junho 14, 2005

O menino que queria ser Deus

Bráulio era um menino normal. Desde muito cedo que se notava a sua veia observadora - aqueles bébés que olham para tudo o que os rodeia com os olhos bem abertos e que estão atentos ao mínimo pormenor - e pacatez, algo que os amigos dos pais dele sempre elogiavam.
À medida que ia crescendo a sua tendência por aprender era magistral: já sabia ler e escrever com quatro anos, leu o primeiro livro aos seis e aos sete anos já estava bem além da sua aprendizagem de escola, sendo usado como exemplo pelos professores junto dos colegas mais velhos. Ele odiava essa forma de humilhação para ele e para os mais velhos, que estavam perante um pirralho com ânsia de aprender e que odiavam por isso mesmo. Mas ele não se exibia, ficava no seu cantinho observando, a fugir de problemas e discussões e sendo sempre pacato e calmo quando os mais velhos os confrontavam com poucos argumentos e muita brutalidade.
Começou a crescer nele um interesse lógico pelo perfeccionismo e, na catequese, começou a ser incómodo para quem lhe prestava o serviço religioso, questionando e querendo saber mais acerca dos "milagres" da religião. Bráulio não percebia porque tinha que citar uns textos quando queria falar com Deus, essa entidade suprema tão presente e tão ausente e misteriosa, e não o interpelava directamente. Tentou falar das duas formas, primeiro com os textos decorados e depois com os seus próprios argumentos, e em nenhuma das vezes teve resposta.
Sempre a questionar a suposta fé que lhe impunham, de ter que passar por essa cerimónia iniciática que os familiares obrigavam a fazer, como que um ritual pré-histórico de entrada na adolescência, Bráulio sentia-se cada vez mais ausente desses textos e sessões de religião; quanto mais ausente mais questionava o seu poder para alguns (muitos) e o enfraquecimento para outros (poucos).
Chegou ao secundário e à data de escolher um futuro caminho, uma profissão. Fascinava-o a medicina - nela poderia competir com esse Deus ceifa vidas e injusto, poderia salvar e investigar para salvar mais e ter o profundo conhecimento do corpo humano e de todas as potencialidades e fraquezas.
Fez os psicotécnicos, como todos, orientado por psicólogos. O resultado espantou toda a gente: Bráulio não era uma pessoa normal, nem mesmo o filho do messias; os seus psicotécnicos davam como orientação... ser Deus!

Como pode o comum mortal, pensou Bráulio, alcançar o inalcançável?
(CONTINUA?)

Paulo Aroso Campos - paulo.aroso@zmail.pt

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